sábado, 3 de abril de 2010

REFLEXÕES ACERCA DA PRÁTICA PEDAGÓGICA EM ESCOLINHAS DEFUTEBOL E FUTSAL A PARTIR DA LEITURA E COMPREENSÃO DEFUTEBOL E FUTSAL A PARTIR DA LEITURA E COM

REFLEXÕES ACERCA DA PRÁTICA PEDAGÓGICA EM ESCOLINHAS DE
FUTEBOL E FUTSAL A PARTIR DA LEITURA E COMPREENSÃO DE
CONTEXTOS ESPECÍFICOS

Ricardo Rezer*
Viktor Shigunov**


RESUMO
Este trabalho teve por objetivo investigar a prática pedagógica no âmbito das escolinhas de futebol/futsal e apontar princípios norteadores de procedimentos metodológicos e pedagógicos que possam servir de pressupostos superadores. O estudo se caracterizou como de natureza descritivo-exploratória e foi desenvolvido em 02 (duas) escolinhas de futebol de campo e 04 escolinhas de futsal, nas categorias fralda (FR) e pré-mirim (PM). Foram utilizados os seguintes instrumentos: questionário de perfil; entrevista semi-estruturada; observação e protocolo das aulas. As reflexões sugerem a necessidade de os contextos de ação destinados ao ensino do futebol e do futsal perceberem o esporte através de uma perspectiva mais ampla de entendimento. Este estudo procurou abrir “novos olhares”, contribuindo com o processo de ensinar e aprender futebol/futsal através de uma perspectiva diferenciada de ação e reflexão.
Palavras-chave: prática pedagógica. Futebol. Futsal. Pressupostos superadores.

1 Este artigo é fruto da dissertação de Mestrado apresentada em fevereiro de 2003, na área de Teoria e Prática
Pedagógica do Programa de Mestrado em Educação Física do Centro de Desportos na Universidade Federal de Santa
Catarina. A comissão examinadora foi composta pelo orientador do trabalho, Prof. Dr. Viktor Shigunov (UFSC), pelo
Prof. Dr. Elenor Kunz e Prof. Dr. Juarez Vieira do Nascimento (UFSC) e pelo Prof. Dr. Vicente Molina Neto (UFRGS).
* Professor do Curso de Educação Física da Unochapecó (Chapecó-SC), Mestre em Educação Física (UFSC).
* * Professor Adjunto do Centro de Desportos da UFSC (Florianópolis-SC), Doutor em Ciências da Educação
(Universidade Técnica de Lisboa).


ENTRANDO EM CAMPO...
Ao se refletir sobre a forma como o esporte é desenvolvido e percebido hegemonicamente, percebe-se um forte elo de ligação entre o esporte veiculado pelos meios de comunicação (concepção hegemônica e massificada) e a prática pedagógica, principalmente em espaços contextuais destinados ao ensino do esporte, em momentos fora do período escolar. Estes espaços são usualmente chamados de escolinhas.
Este estudo teve por premissa básica refletir acerca da prática pedagógica no âmbito das escolinhas de futebol/futsal,realizando uma relação concreta entre os referenciais teóricos estudados e contextos reais específicos. O tema deste estudo centrou-se no ensino dos esportes futebol e futsal e sua interconexão com as estratégias pedagógicas e metodológicas de desenvolvimento no contexto de escolinhas. Torna-se relevante explicitar que existe a consciência de que o futsal e o futebol tornaram-se, com o passar do tempo, esportes extremamente diferenciados, do ponto de vista de alta performance, tanto no plano tático como nas regras, nos sistemas ou na parte técnica. Por outro lado, do ponto de vista da iniciação com crianças, pode-se perceber uma similaridade de desenvolvimento, partindo-se do pressuposto de tratar o futebol e o futsal como “jogos de bola com os pés”. Desta forma, acredita-se na possibilidade de realizar um estudo capaz de analisar estas duas modalidades, que se relacionam na essência, mas apresentam muitos fatores de diferenciação, do ponto de entendimento referente a situações de treinamento e de rendimento.

OS CAMINHOS DO PROCESSO...
Procurou-se não restringir o trabalho ao simples estudo factual do agir, mas sim, ampliar
as perspectivas de observação, a fim de perceber além do material, além do visível, e através das estratégias a seguir, entender e analisar elementos factuais, e perceber o que se encontra nas entrelinhas do mundo da vida.
Neste processo investigativo, o trabalho esteve constantemente apoiado numa abordagem qualitativa para analisar as situações que se desenvolveram com base na observação de realidades específicas.
Para Elias (1992), a finalidade essencial do processo investigativo tem sido suplantada por discussões formalizadas a respeito do método de investigação científica, sendo que o a legitimação de uma investigação científica não é o método, mas sim, a descoberta.
Este estudo caracterizou-se como de natureza descritiva e as ações metodológicas desenvolvidas tiveram como premissa básica servir de referência, e não ser verdades absolutas. Nesse sentido, a experiência com este campo da Educação Física e a relação com o marco referencial teórico estiveram diretamente ligadas com a preocupação em relacioná-los com propostas crítico-superadoras de entendimento do fenômeno esportivo presente em escolinhas de futebol e futsal.
O trabalho foi desenvolvido em 02 (duas) escolinhas de futebol e 04 escolinhas de futsal, na cidade de Chapecó (SC), nas categorias fralda e pré-mirim (crianças com idade variando entre aproximadamente 06 e 10anos), com os professores das respectivas turmas. A amostra foi selecionada através de um mapeamento das escolinhas existentes no município. Foram encontradas 24 escolinhas na cidade, 12 delas pertencentes a um programa da iniciativa pública e as restantes pertencentes à iniciativa privada ou a convênios com escolas, clubes ou empresas. A amostra foi selecionada intencionalmente, sendo constituída pelas seis escolinhas com maior número de alunos, consideradas as mais “tradicionais”, portanto, teoricamente, mais significativas no contexto local.
Para que fosse possível obter maiores informações, abrindo a possibilidade de investigar o maior número possível de situações, utilizaram-se os seguintes instrumentos:

questionário de perfil, que teve por prerrogativa básica realizar junto à coordenação das escolinhas um cadastro de dados, onde foram contemplados alguns aspectos quantitativos e qualitativos (divisão por faixa etária, objetivos, materiais e recursos didático-pedagógicos, instalações, turno das aulas, forma de manutenção financeira,...), a fim de traçar um perfil que serviu de ponto de partida para as ações desenvolvidas a posteriori, apresentando as primeiras impressões quanto às estruturas investigadas;
entrevistas semiestruturadas, com questões abertas para os professores das turmas observadas, partindo de temas geradores, a fim de aumentar as possibilidades de percepção do fenômeno estudado;
Observação e protocolo das aulas, onde foram descritos os procedimentos adotados pelo professor, as estratégias de desenvolvimento dos conteúdos específicos e dos temas adjacentes e subjacentes(valores, relacionamentos, atitudes de alunos e professores, relação vitória x derrota,...), procurando-se observar o caráter implícito presente nestas questões.
Cabe ressaltar que, conforme Kunz (1991), não se acredita que o “saber cotidiano” possa ser obtido pelo simples questionamento direto, como um elemento quantificável e mensurável; por isso, os dados obtidos apenas serviram como referência para este estudo. Para possibilitar o processo de reflexão acerca dos dados obtidos, realizou-se a análise interpretativa das informações obtidas com as observações, com os protocolos e com as informações das entrevistas, traçando-se um caminho norteador para a construção de princípios pedagógicos. Destarte, as análises buscaram fornecer respostas e também apontar caminhos para novas investigações; e conforme Demo (1989), sem perder o caráter lógico, teve-se a preocupação de compreender e questionar a face social dos problemas.

ALGUNS RECORTES DA REALIDADE –CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS
CONTEXTOS INTERPRETADOS...

Existe uma clara concepção hegemônica acerca do trabalho a ser realizado em escolinhas de futebol/futsal, advindo principalmente do esporte de rendimento, utilizado como modelo para o desenvolvimento de aulas nas categorias FR e PM.
Assim sendo, o que se constatou foi uma estratégia de aula amparada por uma concepção instrumental de rendimento técnico-tático específico, com grande preocupação em melhorar as capacidades específicas dos alunos. É importante destacar, segundo Castellani Filho (1998), que não se deve reduzir o conhecimento a fins apenas práticos, compreensão que em certa medida representa uma banalização das possibilidades humanas. As ações desenvolvidas na prática pedagógica estão centradas (como referendado pelas observações realizadas nesse estudo) em uma perspectiva tradicional de ensino, na qual o conhecimento é centralizado nas mãos do professor e o aluno passa a ser percebido como receptáculo do saber. As aulas geralmente apresentam um modelo fechado, onde em primeiro lugar há um aquecimento (quase sempre iniciado por uma sessão de alongamento), um espaço para um treino técnico de fundamentos (geralmente descontextualizados de situações reais de jogo), um coletivo orientado e um coletivo com menos orientações. Os exercícios e procedimentos pedagógicos que envolvem os fundamentos técnicos são ensinados separadamente (método parcial) e após, colocados em jogos (recreativos ou não), até se chegar ao jogo final, como aponta o estudo de Reis (1994). Como exemplo para ilustrar estas reflexões, uma turma de futsal, observada em um contexto de ação, apresentou em um “treino” (PM – 09 a 10 anos) cerca de duas jogadas de centro, três jogadas de lateral, duas jogadas de falta e três jogadas de tiro de meta, totalizando 10 jogadas pré-elaboradas de movimentação ordenada e coletiva dos componentes do time. Após a mecanização das ações, tiveram que desenvolver as mesmas no coletivo. Obviamente todas elas apresentavam diferentes variações/finalizações de acordo com o posicionamento do adversário. Assim sendo, parece um tanto exagerado que crianças de 09 a 10 anos de idade sejam submetidas a cargas de treinamento que são tão exigentes e necessitam de um entendimento tão profundo de manobras ensaiadas. Não obstante, percebeu-se uma dificuldade muito grande, por parte dos docentes, em retirar esses tipos de treinamento da grade específica
do esporte em questão. E isto não se refere aos conhecimentos específicos do futsal e do futebol - pois a própria história dos professores de escolinha geralmente aponta para o caminho do conhecimento competente, no que se refere ao aspecto técnico-específico, o que se comprova nos contextos analisados - mas sim, a um conhecimento mais amplo de esporte e suas relações com a escola, a sociedade, o mundo, enfim, com o próprio ser humano.

Alguns equívocos/mal-entendidos
Neste tópico serão levantadas questões que geralmente são analisadas a partir de um entendimento equivocado e simplista, que procura legitimar o papel das escolinhas através de argumentos pouco sustentáveis e sem fundamentação consistente. Para isto será utilizada uma expressão empregada por Bracht (2000), em seu artigo intitulado “Esporte na escola e esporte de rendimento”onde o autor escreve acerca de equívocos/mal-entendidos referentes à Educação Física e ao Esporte. Neste caso, como algumas situações percebidas no processo de desenvolvimento deste estudo se referem exatamente a questões como esta, a análise levará em conta esta expressão para ilustrar o seu desenvolvimento.

Equívoco/mal entendido 1: O esporte como meio educativo
É preciso ter a clareza de que através do esporte podemos optar por uma prática que sirva ao propósito implícito e explícito de um projeto neoliberal, onde o individualismo prepondera sobre a coletividade e que endossa as desigualdades, ou defender procedimentos que ao menos contribuam para minimizar estas questões e nos quais aspectos como responsabilidade e autonomia tenha mais importância que formar equipes vencedoras, principalmente na idade foco deste estudo.
Desta forma, conforme Bracht (1992), realmente o esporte educa; mas, educar, neste caso, significa levar o indivíduo a internalizar valores e normas de comportamento que servirão para possibilitar sua adaptação à atual estrutura social. Necessita-se, sim, de ações pedagógicas que levem ao questionamento, não ao acomodamento. Desta forma, é preciso ficar claro que o esporte é um meio educativo, e as questões que ficam são: qual o conceito de educação que está em jogo? Educar para quê e para quem? A quem isto serve?

Equívoco/mal entendido 2: O esporte afasta do caminho das drogas É preciso que o papel do esporte se legitime através de uma argumentação consistente e fundamentada, e não por mitos e chavões que há muito já deveriam estar superados. Inclusive, esta questão é colocada, quando possível, fora dos espaços de discussão, para não ameaçar o status “educativo e fomentador da saúde” que é atribuído ao esporte.
Como em qualquer outra instituição social, o esporte é perpassado pela cultura e pelos condicionantes sociopolítico-econômicos da realidade que o cerca. O problema relacionado ao uso de drogas e ao doping é um tema que deve ser abordado em qualquer instância, pois não é apenas o esporte que deve contribuir para a reversão deste quadro, mas sim, qualquer espaço onde existam seres humanos, em ações de iniciativa privada e de políticas públicas. A escola deve ser um espaço realmente democrático, como sempre observava em suas obras Paulo Freire; um espaço onde os professores de Educação Física, dirigentes esportivos, atletas e ex-atletas percebam que a prática pedagógica desenvolvida em escolinhas pode e deve estar comprometida com um projeto de sociedade mais humano, engajado na promoção de valores humanos e em um resgate da cidadania.

Equívoco/mal entendido 3: a disciplina como meio educativo
Ainda se percebem resquícios da herança militar, de modo que os alunos precisam “aprender” a ter disciplina, a fim de se tornarem ”cidadãos corretos”, de “bom caráter” e “boa índole”. Este argumento muitas vezes parte dos pais dos alunos, que, por não conseguirem colocar limites (fundamentados em uma relação de responsabilidade que implique em direitos e deveres) para seus filhos, transferem esta responsabilidade para o professor, a fim de que ele imponha esses limites.Desta forma, o estereótipo do bom trabalho parece ser aquele onde não há problemas, não há discussão, onde tudo é resolvido pelo professor e o aluno anda de acordo com o ritmo ditado. Percebe-se esta realidade hegemonicamente nas equipes, onde ela passa a ser um dos prérequisitos mínimos para o aluno continuar no time. Por outro lado, nas escolinhas onde não há preocupação tão grande com o rendimento, a formatação é parecida, mas o descomprometimento é apresentado em algumas situações, em que o professor não participa como opressor direto, mas atua indiretamente, permitindo que outros exerçam a opressão (alunos maiores, mais habilidosos, entre outros), levando a aumentar ainda mais o abismo entre a disciplina imposta e a falta de clareza sobre limites, direitos, deveres, tanto de aluno como professor. Na realidade, onde o professor não exerce o papel autoritário, alguns alunos tomam para si este papel, e oprimem, em outra versão, os colegas de aula. Este contexto bipolarizado leva a um perfil de aluno também extremo: de um lado, alunos disciplinados, que não “incomodam” (domesticados?), e de outro lado, uma realidade onde os alunos se distanciam cada vez mais de uma relação de responsabilidade baseada em direitos e deveres, e apontam para uma relação de opressor x oprimido, onde somente eles deixam de ser oprimidos quando passarem à classe dos opressores.

Equívoco/mal entendido 4: a seleção no esporte é como a seleção na vida.
Ainda se percebe muito, como argumentação para justificar a realidade extremamente seletiva e competitiva dos contextos de iniciação, a alusão ao título deste tópico. Não cremos que a tendência darwinista de seleção de espécies precise ser levada tão ao pé da letra, para legitimar uma prática seletiva através de argumentos como este. As informações obtidas apontam para uma concordância pura e simples deste aspecto, como se ao nascer o homem já tivesse desenhado em seu código genético ações de sobrepujança para com o seu próximo.
Para Capra (1982), é evidente que o comportamento agressivo e competitivo, se fosse real e absolutamente o único, acabaria por tornar a vida impossível. Deve ficar claro ao professor que a prática pedagógica é uma atividade política, e como tal, envolve uma opção (difícil, dura) por manter ou transformar o status quo. Através de suas ações ele poderá lutar por um ensino competente e democrático, em qualquer âmbito pedagógico, propondo focos de resistência em seu microcontexto de ação. Obviamente, não se trata de ações simples, mas todo processo de superação é perpassado por dificuldades e apresenta as limitações inerentes a uma disputa de poder muito desigual, e a sustentação de nossas ações é que dá o teor de nossa prática pedagógica.

Equívoco/mal entendido 5: rendimento x lúdico
Percebe-se claramente a tendência de colocar de maneira diametralmente oposta a relação entre o lúdico e o rendimento, como se fosse possível compartimentalizar, por exemplo, os sentimentos que permeiam os significados destas situações. Desta forma, Bracht (2000) observa que há um entendimento maniqueísta nesta relação, onde ocorre uma idealização do lúdico e uma “diabolização”do rendimento, como se de um lado estivesse o bem e do outro estivesse o mal. O mesmo autor afirma: “Ora, o comportamento lúdico não existe na sua forma pura, ele está mais ou menos presente em uma série de práticas humanas, portanto moldado culturalmente” (p. XVII).
O aspecto lúdico se torna extremamente importante por relacionar, de forma muito direta, o jogo de bola com o mundo vivido dos alunos, onde a criatividade e a autonomia possam conviver com uma relação de responsabilidades ancoradas em valores humanas como justiça e honestidade.

Equívoco/mal-entendido 6: as regras devem ser obedecidas e seguidas
Há um dogma muito grande com relação às regras do futsal e do futebol, pois parece que elas são imutáveis e foram criadas por deuses que não permitem mudanças. As crianças de 06 anos “precisam”, por exemplo, cobrar o lateral de forma correta (o porquê não se sabe, nem o professor explica...), pois, se durante o jogo da aula (que não é mais um simples jogo de bola, é o “coletivo”) ele é cobrado de outra forma, o lateral precisa ser repetido, “cobrado” do jeito certo; ou pior: em caso de reincidência, é revertido, sendo o “infrator” penalizado com a perda da posse de bola. Não há transformação alguma do corpo de regras, sendo estas simplesmente executadas, sem reflexão, problematização ou construção. Inclusive os alunos não são esclarecidos do significado delas. Assim sendo, o professor muitas vezes confunde o seu papel com o de árbitro e/ou técnico de equipe de rendimento (adulto, geralmente), pois arbitra o coletivo com a autoridade de um árbitro da divisão principal ou com a rigidez de um técnico “disciplinador e durão”.A problematização das regras, as perspectivas de fazer diferente, são deixadas de lado a fim de que a criança aprenda o jeito certo “desde cedo”. Desta forma se perde um excelente espaço de negociação, esclarecimento e exercício de responsabilidade, pois a manutenção e imposição de regras contribuem para a formação de alunos conformados e dependentes, no que tange à diminuição da autonomia de participar da construção das regras da sociedade em que vivem.

Da transição do “vou jogar” para o “vou treinar”
Na construção deste trabalho, não ficou a certeza sobre como deve ser definido o ambiente em que se desenvolvem as atividades das escolinhas, se como aula ou como treino, pois o processo é muito parecido com o treinamento presente no esporte adulto, mas em muitos casos é chamado também de aula. Da mesma forma, não se percebeu ao certo se o condutor do processo poderia ser chamado de professor ou treinador, pois não fica clara a distinção de papéis. Há uma evidente imposição do modelo adulto do esporte, e, salvo raras exceções, o entendimento infantil de esporte não é nem levado em consideração. Tanto que, como sugere o próprio título deste tópico, os alunos não vão mais para a aula nem vão mais jogar bola, mas sim, vão treinar; e o jogo da aula já não é mais um simples jogo, mas o coletivo, onde os alunos ao início da aula já questionam se “hoje tem coletivo”. Se há uma imposição do modelo adulto, há também uma cobrança muito parecida, apenas em dosagem menor. Conforme Souza (2001), muda a dose, mas o remédio permanece igual. Inclusive, os alunos que fazem parte das equipes são, na maioria das vezes, alunos que estão no último ano das respectivas categorias. Raras exceções fazem parte das equipes no primeiro ano de categoria. Isto comprova que as ações têm a intenção de seguir o caminho de equipes vitoriosas, utilizando os meios disponíveis para tal.
O material utilizado, em muitos contextos, já não é qualquer um, pois o aluno precisa ter o uniforme da escolinha, um tênis específico para o futsal ou chuteira, entre tantos outros acessórios. A linguagem utilizada pelos professores (e algumas vezes, pelos próprios alunos) se torna clara a partir de manifestações verbais detectadas em um reinamento/aula, como: “Não pode fugir do jogo, tem que chamar à responsabilidade”; “Saída diagonal”; “Isto vai acontecer bastante durante o jogo, tem que treinar”, “Tem que ter coragem”. Inclusive na questão referente à linguagem, o modelo adulto de esporte impõe-se ao mundo infantil. O mundo do trabalho expressa suas exigências em contextos cada vez mais precoces, onde o uniforme, o horário, a linguagem e a disciplina são regras inquestionáveis, e cada vez mais, contribuímos para a formação de sujeitos dependentes de fatores externos e de outros seres humanos para tomar suas próprias decisões.

A autonomia e a criatividade em escolinhas –ainda uma possibilidade?
Percebe-se que o espaço destinado ao desenvolvimento da criatividade e da autonomia
tem diminuído cada vez mais durante os momentos da aula (ou treino?). Ficou claro que
o professor é quem determina os caminhos e resolve os conflitos. Não há resolução de
conflitos a partir do diálogo entre os atores, mas sim, a partir de determinações do professor ou de sua imposição pelo colega mais forte, mais velho ou mais habilidoso. Um ponto interessante a ser discutido refere-se a questões que serão chamadas de “pontos de fuga”, onde em determinados momentos da aula (ou treino?) os alunos conseguem “fugir” da estrutura sistemática e funcional da aula. Quer na espera da fila quer na coluna, seja no empurrão simulado em um colega seja em uma brincadeira fora do contexto de aula, às vezes escondidos do professor, eles conseguem, de maneira quase subversiva, resgatar a espontaneidade e a autonomia, que se evidenciam como sendo mesmo inerentes ao próprio viver. Neste caso, os “pontos de fuga” podem ser percebidos como um meio de resistência ao sistema hegemônico. Por exemplo, em algumas aulas/treinos, após a execução de certas tarefas (como o chute a gol, por exemplo), nos momentos de repassar a bola para colegas nas “filas”, percebeu-se em várias observações uma infinidade de formas alternativas criadas pelos alunos: com balãozinho, por entre as pernas, de calcanhar, entre tantas outras. Desta forma, observa-se um elemento que não pode ser desprezado em nenhum ambiente pedagógico, ainda mais quando se trata de crianças: o fomento à criatividade. Ainda não se descobriu melhor meio de desenvolver a criatividade do que a ludicidade, que pode proporcionar alegria, prazer, liberdade de criação, não necessitando para isso estar desvinculada de fatores como responsabilidade limites. Muito pelo contrário, através da resolução conjunta de problemas pode-se fomentar um verdadeiro laboratório, no sentido de promover o exercício da autonomia, a partir de possibilidades de entendimento de situações e da construção de soluções.

Para a construção de uma nova concepção de ensino em escolinhas de futebol/futsal – alguns princípios norteadores para a prática pedagógica.
Não se tem a pretensão de propor um conteúdo programático fechado, mas sim, a preocupação de materializar algumas orientações, onde uma perspectiva diferenciada na prática pedagógica desenvolvida possa ser transformada, para criar um ambiente mais favorável a aspectos que transcendam o simples ensinar esportes. O que se propõe é que, ao invés de promover simples exercícios técnicos ou táticos, procure-se fomentar ações que englobem outras perspectivas, conforme as que se seguem: discutir as regras com os alunos, decidindo sobre quais seriam mantidas ou quais seriam transformadas; analisar casos de violência no esporte, nem sempre presentes em espaços de discussão para crianças; desenvolver situações onde os alunos possam se valer de outros padrões motores além do chutar, como rebater, arremessar, lançar, aumentando o repertório de situações; utilizar materiais mais diversificados (por exemplo, bolas de diferentes tamanhos, pesos e texturas, inclusive de outros esportes); brincar com as dimensões de campo e quadra, tamanho e número de traves, além do número de jogadores; instituir a presença de valores como temas adjacentes e subjacentes, procurando contextualizar os acontecimentos de aula; fomentar situações lúdicas de forma mais explícita; oportunizar liberdade de jogar em várias posições, enfatizando momentos de atacar e defender; variar espaços de aula, para que os alunos joguem na grama, na areia, em ginásios, em campos menores, maiores; fomentar o entendimento dos alunos frente a situações de diversidade técnica, incentivando um quadro onde o respeito às diferenças possa ser o pano de fundo, onde as diferenças possam ser entendidas e respeitadas. Sem dúvida, não se trata de tarefa fácil, pois o incentivo ao rótulo (belo, bom, ruim, forte, fraco) está presente em todos os segmentos sociais; mas é tarefa do professor não se calar diante disso, e através de suas ações, contribuir para o repensar desta questão. De acordo com Adorno (1995), o talento não se encontra previamente configurado em homens privilegiados, mas seu desenvolvimento depende do desafio a que cada um é submetido (p.170).

A problematização no contexto de escolinhas de futebol e de futsal
O exercício da problematização nos contextos de aula pode se dar através de várias perspectivas, conforme as possibilidades a seguir. Poderia ser oportunizado ao aluno decidir em conjunto ou co-participar nas decisões desenvolvidas nos contextos de aula, onde as alternativas e decisões são tomadas quase exclusivamente pelo professor, cabendo ao aluno sua execução. Através de pequenas rupturas temporais no desenvolvimento da aula, é possível interagir na perspectiva de buscar soluções, proporcionando ao aluno um laboratório onde ele possa agir como co-autor no processo decisório; ou seja, participar é comprometer-se. Poder-se-ia problematizar a relação do aluno com as situações de jogo, passando-se a colocálo perante situações significativas, apropriadas para o desenvolvimento e conhecimento do jogo, de maneira que, conforme Graça e Oliveira (1995), o professor possa identificar as experiências de jogo que os alunos possuem e colocar estes conceitos em xeque, para criar um conflito, e que este desequilíbrio possa contribuir na busca de novas soluções e respostas - e ainda, pode-se acrescentar – na busca de novas perguntas. Neste caso, os erros dos alunos devem servir de matéria para o professor, estreitando as relações entre o jogo e o jogador.

Uma proposta de festival de jogos e uma negação de campeonatos e torneios formatados para estas categorias.
Os campeonatos são estruturados para crianças da categoria FR e PM com os mesmos conteúdos e exigências com que é estruturado para atletas adultos pertencentes a equipes de alto nível. Desta forma, pode-se refletir sobre a proposta dos festivais de jogos, onde duas ou mais escolinhas possam jogar juntos, a saber: jogos com tempo reduzido, em torno de 10’ ou 15’ (pela experiência adquirida, parece que as crianças preferem, por exemplo, jogar quatro jogos de 10’ a jogar um de 40’); jogo normal, constituído dos elementos do próprio esporte; construção conjunta de regras pelas quais se possa decidir sobre tempo, espaço, limites e possibilidades, de maneira que as decisões sejam tomadas a partir das experiências de aula; jogos diferenciados, utilizando diferentes dimensões do campo de jogo, maior número de bolas, diferentes pesos e tamanhos, aumentando e diminuindo o tamanho das traves e o número de jogadores; jogos combinados, onde os times seriam constituídos por alunos das escolinhas participantes, com times formados a partir da escolha dos próprios alunos, com crianças de várias escolinhas; confraternização em etapas, sendo uma etapa em cada cidade ou bairro das Escolinhas participantes, utilizando o “sistema de adote”, já bastante conhecido; distribuição igualitária dos alunos para participação nos eventos, independentemente dos níveis de habilidade, utilizando sistema de rodízio, se necessário. Novamente, é preciso estar claro que não se trata de receituários, mas sim, de perspectivas concretas de pontos que podem servir de partida para um novo entendimento no que se refere ao esporte e às relações entre as pessoas. Os caminhos que vem tomando o esporte de alto nível precisa ser colocado em discussão, pois introduz de forma cada vez mais precoce na vida das crianças elementos que pertencem ao mundo adulto. Através de reflexões e de tentativas de ensaio-erro, pode-se contribuir para a revisão dos rumos que a ótica de mercado presente na civilização ocidental introduz em crianças que praticam esportes.

PARA UM NOVO PAPEL DAS ESCOLINHAS DE FUTEBOL E FUTSAL.
Procurou-se deixar claro que a prática pedagógica em escolinhas de futebol e de futsal necessita ser direcionada para um rumo em que as crianças sejam tratadas como crianças, e não como miniatletas. Cumpre estabelecer uma diferença de procedimentos em relação ao esporte de alto nível e ao esporte para crianças (não apenas adaptativa), de maneira que o mundo adulto seja percebido apenas como referência, e os conteúdos, processos e meios sejam diferentes não apenas na intensidade, mas também na essência e na profundidade do comprometimento com um projeto que permita a construção de situações que contribuam com a formação de um ser humano competente, crítico e responsável.
Em momento algum deste trabalho se teve a pretensão de ensinar como colegas de profissão devem trabalhar, mas sim, buscou-se traçar algumas orientações que não podem em hipótese alguma ser repassadas ou assimiladas de forma “missionária”, mas sim, devem servir de ponto de partida, ser refletidas e questionadas em cada situação específica, onde as ações precisam estar de acordo com cada contexto e articuladas pelo comprometimento que transcenda a já complexa ação de ensinar o futebol e o futsal. Desta forma, evidenciamos a preocupação em acreditar que meninos desta idade poderiam ter aula de futebol ou futsal ao invés de treino, jogar bola ao invés do coletivo, estar inseridos no mundo do brinquedo, ao invés de, cada vez mais precocemente, adentrar no mundo do trabalho; e o papel do coordenador deste processo poderia pertencer a um professor e não a um instrutor ou treinador. O futebol e o futsal poderiam ser tratados como jogos de bola com os pés, de maneira que a distância entre estes esportes fosse diminuída em nome de uma ampliação da capacidade de interpretação deste fenômeno cultural.
Finalizando, espera-se que este estudo tenha a possibilidade de contribuir com o ensino do futebol e do futsal através de uma perspectiva diferenciada de ação e reflexão. Nessa perspectiva a instrumentalização deverá ter a sua relevância, porém constituir uma das dimensões do processo de ensino aprendizagem, e não a única. Possam as escolinhas de futebol e de futsal realmente contribuir para a implantação de princípios que auxiliem no desenvolvimento concreto de seres humanos comprometidos com seu próximo e com a transformação da estrutura social, a fim de torná-la mais justa, mais sábia, enfim, mais humana.

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