quarta-feira, 24 de março de 2010

Elas estão com a bola toda? Uma visão sobre a prática do futsal feminino em Santa Maria - RS

Elas estão com a bola toda? Uma visão sobre a prática do futsal feminino em Santa Maria - RS

Cláudia Samuel Kessler (UFSM)
Feminilidade, futsal, performance.
ST 71 - Futebol: feminilidades e masculinidades em jogo.

Uma introdução à prática do futsal feminino.

Como muitos brasileiros já sabem, a prática do futebol de campo começou no ano de 1914. Desde lá até os dias de hoje foi tempo suficiente para o Brasil ser reconhecido internacionalmente como país do futebol. Com atletas masculinos que ganham milhões por mês, surge a pergunta: será que atletas de futsal feminino possuem o mesmo reconhecimento? Como será a prática de futsal feminino nas cidades brasileiras? E no interior do Rio Grande do Sul?
Considerando-se a similaridade entre o futebol e o futsal, seria de se imaginar que ambos teriam o mesmo tipo de reconhecimento pela torcida brasileira. Todavia, ainda predomina um abismo entre a prática dos dois esportes. Essa diferença aumenta ainda mais quando voltamos os olhares para as modalidades feminina e masculina de futsal. Não apenas devido à discriminação entre os sexos, mas também por razões históricas.
A prática do futebol de salão feminino foi autorizada pela Federação Internacional de Futebol de Salão (FIFUSA) em 23 de abril de 1983. Desde essa data até 7 de dezembro de 2001, quando a seleção feminina de futsal fez sua primeira apresentação deu-se 18 anos. Já quando observamos a seleção de futebol de campo, o naipe feminino já havia se organizado dez anos antes, em janeiro de 1991, para o Campeonato Mundial da China. Apesar dessa diferença entre seleções femininas de futsal e futebol, ao compararmos com a data de formação da seleção brasileira masculina de campo, a qual foi organizada em 20 de agosto de 1914, perceberemos um período de quase 80 anos de diferença em termos de prática esportiva e de organização.
As mulheres estavam impedidas de praticar determinados esportes desde a década de 1940, pelo Decreto-Lei nº 3.199, do Ministério da Educação, art. 54, o qual instituía: “Às mulheres não se permitirão a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. No caso do futebol, a proibição incidiu mais incisivamente de 1964 até 1979, quando o Conselho Nacional de Desportos revogou a deliberação nº 7/65 que as impedia de praticarem "lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball". Foi apenas na década de 1980 que as mulheres puderam recomeçar a prática desses desportos, bem como do futebol de campo, de praia ou o futebol de salão.
Tanto no quesito patrocinadores, quanto na questão do incentivo, muito da questão histórica ainda é trazido quando se trata da prática do futebol ou do futsal. A desigualdade de tratamento e a questão de privilégios e valores legitimados como "dignos" dos homens, criam rótulos sexistas que desacreditam a performance feminina. Assim, segundo Santana (2007, s.p.), "Nunca é demais lembrar que o esporte não é masculino ou feminino, mas são as culturas, a partir das suas crenças, que lhe imprimem significados”.Assim, o futebol é aceito em alguns países, em algumas regiões, enquanto em outros lugares é entendido como um esporte inaceitável para um grupo de pessoas ou até mesmo ignorado pela maioria de sua população. Há povos que possuem acentuadas algumas características que influenciam em seus ânimos esportivos, como a improvisação e espontaneidade do brasileiro ou o raciocínio e autocontrole dos europeus (LYRA FILHO, 1973 apud GUEDES, 1998).
Em nossa sociedade ocidental, as mulheres possuem certas liberdades das quais as mulheres de algumas partes do mundo oriental são privadas, como por exemplo o uso de roupas mais curtas (e no caso do futebol, o calção). Porém, tal fato não exclui a possibilidade da existência de preconceitos ainda introjetados na cultura de alguns países. No caso do Brasil, esse preconceito ainda existe, de que a mulher pode ficar masculinizada ou machucar órgãos reprodutores, em um esporte "violento", que exige "força bruta" e explosão. Pode-se citar, por exemplo, atos como o de José Fuzeira, o qual escreveu, em 1940, uma carta ao presidente Getúlio Vargas alertando-o de que a prática do futebol por mulheres poderia acarretar em uma calamidade, afetando seriamente o “equilíbrio fisiológico de suas funções orgânicas” e destroçando a saúde de “2.200 futuras mães”.
Mas, quem disse que as mulheres devem ser sempre delicadas, frágeis ou voláteis? Essas são questões que envolvem outros diversos fatores culturais, religiosos e tabus sociais, construídos a partir de uma lógica machista e preconceituosa. Tal fato, prejudica o desenvolvimento das mulheres em atividades como o futsal que, mesmo sendo ensinada para meninos e meninas nas escolas, ainda causa polêmicas quanto à melhor maneira de ser abordada.
De acordo com Souza Júnior & Darido (2002, p.1 apud FARIA JÚNIOR, 1995), "talvez um dos motivos para o atraso da prática do futebol pela mulher tenha sido devido à pouca participação e oportunidades oferecidas a elas, com uma Educação Física injusta, burguesa, branca e machista". Reforçando este argumento, um trabalho realizado por Altmann (1998) estudou a exclusão por gênero e habilidade existente dentro das escolas, em que, devido ao forte caráter competitivo presente na prática esportiva, as meninas eram excluídas pelos meninos, os quais sentiam ter a obrigação de serem melhores do que elas.
Souza e Darido (2002, s.p.) afirmam que "por força do processo de transmissão cultural reforçam-se os preconceitos, colaborando para que as meninas não tenham as mesmas experiências dos meninos, criando-se então uma cadeia de situações que leva à exclusão e à falta de motivação por parte das mesmas (...)". Evidencia-se que a exclusão no princípio da atividade, pode ser capaz de desestimular que essas meninas prossigam praticando a modalidade, o que, desta forma, influencia no desenvolvimento de suas habilidades, aumentando a exclusão em fases posteriores.
Evidenciam-se, assim, argumentos como o de Franzini (2005, s.p.), segundo o qual a ordem estabelecida é freqüentemente reforçada, sendo que "A entrada das mulheres em campo subverteria tal ordem, e as reações daí decorrentes expressam muito bem as relações de gênero presentes em cada sociedade: quanto mais machista, ou sexista, ela for, mais exacerbadas as suas réplicas."
Os esforços que as meninas precisam ter extra-campo, para convencer seus pais a deixarem que pratiquem a modalidade; o preconceito que sofrem de outras meninas que não jogam e de meninos que não acreditam que mulheres podem jogar bem, fazem com que muitas praticantes se desestimulem e parem de jogar. Além das questões que historicamente limitaram a participação feminina em práticas sócio-esportivas e competitivas, as meninas ainda tem de lidar com preconceitos ainda existentes, e que criam imagens distorcidas e limitadas sobre a modalidade.
Com isso, as vitórias no futsal e futebol feminino, mesmo que em ritmo lento, são muito comemoradas. Mesmo havendo uma grande disparidade existente com relação a cifras e glamour entre o masculino e o feminino, deve-se considerar os esforços empreendidos por ambos e aplaudir as atuações realizadas nas últimas campanhas. A exemplo disso, no último mundial, em 2007, na China, a equipe brasileira feminina foi vice-campeã e teve Marta como artilheira da competição.

Se formos considerar que

A expectativa do público em relação à performance das equipes em que depositam uma fé totêmica e, por extensão, dos jogadores que as integram, assumiu tamanha importância que se desenvolveram, paulatinamente, estratégias para tornar mais aptos os já tidos como aptos para estar no centro da arena. (DAMO, 2007, p.22)

As mulheres ainda lutam por seu lugar ao sol, por um espaço em que possam desenvolver suas habilidades e um espaço em que possam demonstrar os conhecimentos adquiridos. A fé depositada nelas, longe de ser totêmica, é uma fé que acredita desacreditando, que incentiva desincentivando, e que ao invés de vê-las no centro da arena como alvo das atenções, as considera tal qual os Forcados, grupo amador que enfrenta o touro em pé e entrete o público, enquanto o toureiro se prepara para o espetáculo final: il gran finale.

A prática da modalidade em Santa Maria - RS

Em Santa Maria, atualmente, são cerca de 12 equipes femininas que estão em atuação nas competições. Porém, essas equipes passam por constantes transformações em seus elencos, bem como em seus nomes, dificultando um trabalho continuado e a associação de uma identidade aos grupos formados. Além disso, algumas meninas ficam grávidas, outras param de jogar devido a outras atividades, devido aos estudos, às vezes por lesões ou brigas com os técnicos. Enfim, são diversos motivos que podem causar o afastamento das meninas. Aliando esses motivos à falta de incentivo público e privado, assim como a falta de quadras e disponibilidade de pessoas que invistam no futsal feminino, mesmo assim a modalidade tem crescido em número de adeptas.
Mesmo não havendo ainda nenhum trabalho que analise essa questão quantitativamente, percebe-se que o número de equipes que antes participavam de campeonatos citadinos (que chegou a ser reduzido até um número de quatro equipes), atualmente vem crescendo. Ainda em um crescimento desajeitado, o futsal feminino na cidade de Santa Maria está desenvolvendo bons trabalhos e ganhando títulos em torneios realizados na região. Porém, tudo está sendo conseguido com o esforço e a determinação de pessoas que investem esforços porque se autodenominam “apaixonadas pelo esporte”, dedicando seu tempo, geralmente em finais-de-semana, para organizar e treinar as equipes.
Anteriormente, o Campeonato Citadino de Santa Maria era realizado nas modalidades masculinas e feminina pela Liga Santamariense de Futebol de Salão, fundada em 21 de julho de 1961. Porém, devido a desentendimentos e falhas na organização, em 2002 apenas 4 equipes principais participaram do campeonato, mostrando a forte desagregação da modalidade.
Percebendo a necessidade de incentivos direcionados para o futsal feminino, e tendo em vista que é uma modalidade que carece de cuidados específicos, foi fundada a Liga de Futsal Feminino de Santa Maria (LFFSM), em 2 julho de 2006. Anteriormente, outra tentativa de Liga Feminina havia sido aventada e noticiada pelo jornal Diário de Santa Maria de 10 de setembro de 2003, com a manchete "Futsal feminino se organiza".
Além de possuir 13 equipes filiadas, a LFFSM informa que há mais duas equipes em processo de filiação. Porém, quatro das equipes que já estavam filiadas, atualmente estão com suas atividades paralisadas, enquanto outras equipes entram em contato para saber informações sobre como se organizarem. Procurando dar o exemplo, a própria LFFSM teve a iniciativa de fazer um trabalho de base com jogadoras iniciantes. Em seletiva realizada 23 de fevereiro de 2008, compareceram cerca de 30 garotas, dentre as quais, grande maioria nunca havia jogado em nenhuma equipe, devido à falta de oportunidades.
A falta de incentivo é apontada pela presidenta da LFFSM, Maria de Lurdez Rodrigues Ruas, como um dos entraves na modalidade, até mesmo para a organização de campeonatos. Podese ressaltar que das equipes da cidade, apenas duas possuem patrocinadores. As demais, contam com colaboração espontânea das atletas para custear as viagens a torneios em outras cidades e para o pagamento de inscrições e taxas.

Como as atletas de futsal feminino de Santa Maria vêem a si mesmas e são vistas

Para Souza Júnior & Darido (2002), "A história da Educação Física mostra que ela foi sempre discriminatória mantendo os papéis sexuais distintos e determinados, caracterizando os comportamentos tipicamente masculinos e femininos, a serviço de uma ideologia sexista". Freqüentemente, a prática do futebol é permeada por algumas questões, como: feminilidade, maternidade, razões estéticas e saúde. Exemplificando, pode-se citar um dos ideais que corriqueiramente se escuta sobre a expectativa de homens sobre o que verão em jogos de futebol feminino: shorts minúsculos, coxas à mostra, maquiagem, brincos e longos cabelos.
Porém, não é essa a visão que geralmente é vista nos treinos de futsal em Santa Maria, RS. A maior parte das meninas vai aos treinamentos com camisetas largas, calções, sem maquiagem e sem brincos. Alguns dos motivos que elas enumeram para o modo de se vestir, são o conforto e a praticidade. Além disso, a falta dos brincos se deve ao risco que ele pode causar de ferimentos, caso enganche em alguma outra superfície, como o corpo de uma adversária ou parte do uniforme.
E o modo de vestir-se foi apontado por uma das meninas como alvo de "olhares atravessados", quando questionada sobre o preconceito. C.M., 19 anos, estudante, joga em uma das equipes da cidade, e quando lhe perguntam sobre como as pessoas vêem a prática esportiva do futsal feminino, expõe que "As pessoas, na rua, ficam olhando diferente, sabe. O olhar delas é recriminador. Ficam olhando a gente de cima a baixo, cuidando".
A recriminação e a falta de incentivos por parte dos pais são alguns dos argumentos que levam muitas meninas a desistirem da modalidade, assim como o argumento de que podem se tornar lésbicas. Quando indagada, J.P, 18 anos, disse que "Fica até ruim pra conseguir namorado, porque todo o mundo fica pensando que a gente tá no meio pra namorar outras meninas. E não é essa minha praia. Fica até chato, porque a gente sabe que tem pessoas que pensam assim. E eu sempre fui é pra jogar, pra descontrair".

E elas estão com a bola toda?

O desenvolvimento do naipe feminino em muitas modalidades se dá a passos muito pequenos. Todavia, devemos exaltar o empenho de diversos amantes do esporte, que dedicam seu tempo pessoal para contribuir com a prática do futsal feminino.
Mesmo verificando os esforços das atletas e dirigentes das equipes de futsal feminino é de se indagar se em um futuro próximo poderemos acreditar que, conforme mais pessoas depositarem fé no futebol e futsal feminino (não apenas em nível nacional, mas localmente), a importância da modalidade aumentará a ponto de serem mais valorizadas, de o aumento no número de adeptas proporcionar incentivos que resultem em trabalhos mais duradouros e jogadoras mais aptas; tornando assim a modalidade feminina em um atrativo não apenas pela beleza, graça ou simpatia das jogadoras, mas também pela habilidade. Cabe expormos também, conforme Simões (2005), que: “a hetereogeneidade das mulheres no esporte moldou recursos para resolver pressões provocadas pelas forças sociais amarradas às relações do poder – ou alguém dúvida que as mulheres ficaram mais poderosas e ganharam mais expressão em sua aliança com o esporte de alta performance?”.
Para concluir, torna-se importante o incentivo a prática do futsal não apenas como esporte de fácil prática, o qual exige poucos recursos e equipamentos, mas também como ação promotora da integração, do espírito de equipe, do trabalho em conjunto.
E quanto ao futsal, cabe ressaltar:
Por último: possíveis comparações com o futsal masculino devem ser sumariamente evitadas, pois são, minimamente, inoportunas. Mulheres têm de ser comparadas entre si. Assim terão respeitado sua individualidade; assim as meninas poderão se iniciar no futsal sem a responsabilidade e/ou o objetivo de terem de se comportar como os meninos naquilo que fazem para serem aceitas pelos (as) professores (as). (SANTANA, 2007, s.p.)
Dessa forma, pode-se dizer que as meninas talvez ainda não estar com a bola toda, mas que se deixar quicando na área, é bem provável que façam o gol.

Referências Bibliográficas
ALTMANN, H. Rompendo Fronteiras de Gênero: Marias (e) homens na Educação Física. Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1998. Dissertação de Mestrado, Faculdade de
Educação.
DAMO, Arlei. Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. 1. ed. São
Paulo: HUCITEC, 2007.
FRANZINI, Fábio. Futebol é "coisa para macho"? Pequeno esboço para uma história das mulheres
no país do futebol. Revista Brasileira de História, vol.25, n.50. São Paulo, Jul-Dec, 2005.
Disponível em:01882005000200012&lng=enenDirectory&nrm=iso&tlng=enenDirectory>. Acesso em: 29 jun
2008.
LANGER, Suzanne. Filosofia em nova chave: um estudo do simbolismo de razão, rito e arte. São
Paulo: Perspectiva, 1971 apud LANGDON, Jean. Performance e preocupações pós-modernas na
antropologia. In: TEIXEIRA, João Gabriel. Performáticos, performance e sociedade. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1996.
LYRA FILHO, João. Introdução à sociologia dos desportos. Rio de Janeiro: Bloch: Brasília, DF,
Instituto Nacional do Livro, 1973 apud GUEDES, Simoni Lahud. O Brasil no campo de futebol:
estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro, 1998.

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